Foto: Acervo do MNPCT, 2022.
Marmitas com comida estragada a ponto de o cheiro provocar náuseas. Presos em tratamento inicial de tuberculose usados como vetor de contaminação para castigar outros detentos saudáveis. Reclusão por mais de trinta dias em celas de castigo. Torturas físicas e psicológicas.
Esse é o retrato do sistema prisional do Rio Grande do Norte flagrado pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) durante inspeções realizadas em novembro de 2022.
O MNPCT é um órgão de estado, associado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, que tem como objetivo prevenir e combater a tortura, além de outros “tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”. Foi instituído para atender o compromisso internacional assumido pelo Brasil em 2007 com a ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção Contra Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU). O órgão colegiado é composto por peritos independentes que têm acesso a instalações de privação de liberdade, como centros de detenção, estabelecimentos penais e hospitais psiquiátricos. Observadas violações, os peritos elaboram relatórios com recomendações às autoridades competentes.
As violações constatadas nas inspeções em cinco unidades de privação de liberdade potiguares, entre elas a Penitenciária Estadual de Alcaçuz (palco da maior e mais violenta rebelião do sistema potiguar), serão publicadas em um relatório que está em fase de aprovação pela plenária do MNPCT. O Rio Grande do Norte tem 19 estabelecimentos penais.
Desde terça-feira (14), o Rio Grande do Norte sofre com uma onda de ataques que, segundo as autoridades locais, é realizada por uma facção que atua nos presídios do estado.
Na terça, o secretário de Segurança Pública do RN afirmou que os crimes são uma reação a ações policiais que apreenderam drogas e armas nos últimos 15 dias.
Mensagens que circularam nas redes sociais e são atribuídas à facção dominante no estado criticam as condições — apontadas como “degradantes” — dentro dos presídios.
A Secretaria Estadual de Segurança Pública não descarta que a ordem para a onda de ataques a tiros e incêndios tenha partido de dentro de presídios. O secretário Francisco Araújo afirmou nesta quarta (15) que os ataques foram motivados por exigências de “regalias”, como aparelhos de televisão e visitas íntimas, para presos.
“Quanto pior as condições do sistema prisional, maior a violência aqui fora”, diz a antropóloga Juliana Melo, professora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ela acompanhou de perto a rebelião na Penitenciária Estadual de Alcaçuz, que deixou 27 mortos em 2017, e seus desdobramentos.
“No Rio Grande do Norte, o sistema prisional funciona a partir da prática sistemática de torturas físicas e psicológicas”, afirma Bárbara Coloniese, perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). “Trata-se de uma engrenagem de falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação”.
As inspeções foram realizadas de forma conjunta com a Defensoria Pública estadual, o Conselho Nacional de Direitos Humanos e Cidadania e com o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. O MNPCT já havia realizado inspeções similares em unidades do estado em 2018 e em 2017, após o massacre em Alcaçuz. Coloniese integrou a equipe também em 2017.
Após a última visita, as autoridades locais foram informadas sobre a situação nas unidades inspecionadas por meio de ofícios enviados ao governo estadual e ao Ministério Público Estadual.
O g1 procurou o governo do Rio Grande do Norte e o Ministério Público Estadual por volta das 8h, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.
Violações no sistema prisional
Segundo a inspeção realizada pelo MNPCT em novembro de 2022, o quadro nas unidades visitadas é de falta de assistência de saúde. Foram encontrados casos de problemas de pele, meningite e de tuberculose, muitos sem receber os tratamentos adequados, com pessoas “escarrando sangue”.
“Nós flagramos uma situação numa cela de castigo, onde eles colocavam uma pessoa com o tratamento iniciado de tuberculose, quando ele ainda era um vetor de contaminação, dentro da cela como forma de castigo para que as outras pessoas que não tinham tuberculose fossem contaminadas”, relata Coloniese.
O quadro de saúde dos presos é agravado pela falta de alimentação adequada. De acordo com a inspeção do MNPCT, a alimentação oferecida é precária, com baixo valor nutricional — isso quando não está estragada. A falta de comida própria para consumo já vem causando um quadro de fome e emagrecimento entre os presos.
“Foi muito impressionante, porque em muitas dessas verificações o cheiro das marmitas causava náuseas, enjoo”, conta Coloniese. “Mesmo com uma máscara muito potente em relação à prevenção contra a Covid-19, eu conseguia sentir o cheiro do azedo”.
Segundo a Lei de Execução Penal, é dever do Estado brasileiro prover às pessoas sob sua custódia alimentação e instalações higiênicas, além de assistência à saúde, incluindo atendimento médico, farmacêutico e odontológico.
Nas unidades visitadas, segundo a perita, havia pessoas machucadas ou com marcas de tortura em todas as celas inspecionadas.
“Percebemos também um alto nível de tortura psicológica, porque bastava os policiais mexerem na arma para eles se colocarem em posição de procedimento”, diz Coloniese.
“Procedimento” se refere a uma posição em que os presos precisam se colocar ao ouvir o comando dos policiais penitenciários: no chão, sentados, com as mãos na cabeça, um encaixado no outro. Segundo os relatos colhidos pelo MNPCT, se os presos não se colocam rapidamente na posição, são atacados com balas de borracha e gás de pimenta.
“Nunca vou esquecer o rosto daquelas pessoas. O pânico, o sofrimento, a dor, estavam estampadas escandalosamente nos rostos delas”, diz a perita.
Nas unidades inspecionadas, há ainda um problema de superlotação, com celas abrigando 40 a 60 pessoas.
Segundo a Secretaria de Estado da Administração Pública (Seap), atualmente são 7.804 presos para apenas 6.353 vagas. Um déficit de 1.451 vagas.
Histórico de problemas
A situação encontrada pelo MNPCT não é inédita. A antropóloga Juliana Melo, professora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), acompanhou grupos de familiares de presos durante anos após o massacre de Alcaçuz, em 2017.
“Eles relatavam torturas dos mais variados tipos, como beber água sanitária, choque elétrico, ficar horas em posição de procedimento, ser obrigado a andar nu. Sem falar na humilhação dos familiares na hora de fazer a visita”, afirmou ela ao g1.
“Isso gera muita revolta no sistema e acaba transbordando para a rua, como estamos vendo agora, provocando uma espiral de violência”, diz Melo.
“Precisamos construir presídios que valorizem a dignidade humana para que essas pessoas saiam recuperadas para um convívio que, inevitavelmente, vai acontecer — já que no Brasil não temos pena de prisão perpétua. Em vez disso, nossas prisões acabam potencializando os criminosos e criando pessoas que saem de lá com ódio e vontade de se vingar”.
Ela lembra que o Brasil tem a terceira maior população carcerária no mundo e que, portanto, se os presídios brasileiros “resolvessem alguma coisa, o país seria perfeito”.
Segundo ela, para romper com essa espiral é preciso investir em educação – “a cada 10 presos”, diz Melo, “sete não tem ensino fundamental completo” e trazer dignidade para as prisões.
Por G1.
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